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AZUL 04

RESENHA DO DOCUMENTO "Veritatis Splendor"

JOÃO PAULO II. Carta Encíclica Veritatis Splendor. 2ª ed. São Paulo: Paulinas, 1993 


O primeiro capítulo da encíclica Veritatis Splendor, tem como ponto de partida o encontro de Jesus com o jovem rico, narrado no Evangelho de Mateus (19,16-22). Esse episódio é usado por João Paulo II para apresentar as bases da moral cristã e para reafirmar que a busca pelo bem e pela verdade está profundamente enraizada no coração humano. O Papa destaca que essa pergunta feita pelo jovem – "Que devo fazer de bom para alcançar a vida eterna?" – reflete uma inquietação fundamental que atravessa toda a história, da humanidade: a necessidade de encontrar um sentido para a vida e de saber qual é o caminho moral correto. Essa busca não se trata apenas de um questionamento sobre normas e regras a serem seguidas, mas de um desejo mais profundo de plenitude e felicidade, que só pode ser verdadeiramente satisfeito em Deus.

Ao responder ao jovem, Jesus aponta diretamente para Deus como a fonte do bem, afirmando: "Um só é bom". Com essa afirmação, Ele ensina que a bondade não é uma construção humana arbitrária, mas tem sua origem no próprio Deus, que é a verdade absoluta e o bem supremo. Além disso, Cristo indica que o caminho para a vida eterna passa pelo cumprimento dos mandamentos. Isso demonstra que a moral cristã não é apenas um conjunto de normas externas ou um código ético subjetivo, mas uma resposta à verdade divina e uma orientação para a comunhão com Deus. A vida moral, portanto, não é apenas um esforço humano, mas um caminho que deve ser trilhado em resposta ao chamado divino.

No entanto, a simples observação dos mandamentos não é suficiente para atingir a plenitude da vida cristã. Isso fica evidente quando o jovem, após afirmar que já cumpre os mandamentos, pergunta a Jesus: "Que me falta ainda?". Essa pergunta revela que o coração humano sempre anseia por algo mais, algo que vá além do mero cumprimento de preceitos morais. Jesus então lhe faz um convite mais radical: "Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que possuis, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no céu; depois, vem e segue-me". Com essas palavras, Cristo aponta para um chamado superior, que transcende a simples obediência às normas e conduz à perfeição no amor. Esse chamado não se limita apenas ao jovem rico, mas se estende a todos os cristãos, pois seguir Jesus significa deixar para trás tudo aquilo que pode nos afastar de Deus e colocar Ele a nossa única verdadeira segurança.

É destacado que a resposta de Jesus revela um princípio fundamental da moral cristã: a liberdade humana está intrinsicamente ligada à verdade. O mundo moderno, marcado pelo relativismo e pelo subjetivismo moral, muitas vezes apresenta a liberdade como uma capacidade de fazer escolhas sem restrições. No entanto, o Papa reafirma que a verdadeira liberdade não consiste em fazer o que se quer, mas em escolher o bem, que tem sua raiz na verdade revelada por Deus. A liberdade desvinculada da verdade leva ao caos moral, ao individualismo extremo e à perda do sentido autêntico da vida. O ser humano só encontra sua plena realização quando se abre à verdade de Deus e se orienta por ela.

Outro aspecto essencial abordado no capítulo I é a relação entre a Lei de Deus e a vocação do homem. Os mandamentos dados por Deus ao povo de Israel foram um dom, e não uma imposição arbitrária. Eles serviram para guiar a humanidade para uma vida em harmonia com a vontade divina, prevenindo o pecado e conduzindo à justiça e à paz. No entanto, com a vinda de Cristo, a Lei é levada à sua plenitude. Jesus não veio abolir os mandamentos, mas dar-lhes um significado mais profundo. No Sermão da Montanha, Ele ensina que não basta cumprir externamente as normas morais; é necessário transformar o coração. Dessa forma, o "Não matarás" se torna um chamado a evitar toda forma de ódio e vingança, e o "Não cometerás adultério" se torna um convite à pureza do coração e ao respeito pelo verdadeiro significado do amor humano.

A encíclica ao refletir sobre o chamado à perfeição, o seguimento de Cristo é um caminho que exige entrega total e amor incondicional. A moral cristã não pode ser reduzida a um mero legalismo, mas deve ser compreendida como uma resposta amorosa ao dom da salvação. Para o cristão, seguir os mandamentos não é um peso, mas um meio para crescer na santidade e na comunhão com Deus. No entanto, essa caminhada não pode ser percorrida apenas com as forças humanas; é necessário o auxílio da graça divina. As palavras de Jesus aos discípulos, quando eles, perplexos com a dificuldade do caminho proposto, perguntam: "Quem pode então salvar-se?". Cristo responde: "Aos homens é impossível, mas a Deus tudo é possível". Essa afirmação é fundamental para entender que a perfeição cristã não se alcança apenas pelo esforço humano, mas pelo dom da graça, que transforma o coração e dá forças para viver conforme a vontade de Deus.

Por fim, alerta sobre os desafios contemporâneos que ameaçam a moral cristã. É mencionado o crescimento do relativismo, do subjetivismo e de certas correntes teológicas que tentam separar a fé da moral, argumentando que a Igreja não deveria impor normas universais, mas apenas "inspirar valores". O encíclica refuta essa visão, afirmando que a Igreja tem a missão de preservar e transmitir a verdade moral revelada por Deus. O Magistério não impõe normas arbitrárias, mas orienta os fiéis no caminho da salvação, garantindo que a moral cristã permaneça fiel ao Evangelho. Assim, o primeiro capítulo apresenta um fundamento para a moral cristã, mostrando que ela se baseia na verdade de Deus, na liberdade orientada para o bem e no chamado à perfeição no amor. O ensinamento de Jesus ao jovem rico continua sendo um convite atual para todos os cristãos: abandonar tudo o que impede a plena comunhão com Deus e segui-Lo com um coração livre e cheio de amor.

O capítulo II da encíclica, intitulado "Não vos conformeis com a mentalidade deste mundo" (Rm 12, 2), apresenta uma análise crítica das tendências contemporâneas da teologia moral, contrapondo-as à doutrina moral da Igreja fundamentada na Revelação divina. A encíclica desenvolve uma reflexão sobre a liberdade humana, a consciência moral e a lei natural, reafirmando a necessidade de ancorar a vida moral na verdade revelada por Deus.

O capítulo inicia destacando a centralidade do diálogo entre Jesus e o jovem rico, extraindo dele verdades fundamentais para o agir moral cristão. Entre essas verdades estão a subordinação do homem a Deus  (Aquele que é o próprio Bem), a relação entre os atos humanos e a vida eterna, o seguimento de Cristo como caminho para o amor perfeito e o dom do Espírito Santo, que transforma o homem em uma nova criatura. A Igreja, guiada pelo Espírito, preserva e aprofunda continuamente essa doutrina moral, mantendo-se fiel à Palavra de Deus e à tradição apostólica.

O capítulo ressalta o desenvolvimento da teologia moral como uma ciência que integra a Revelação e a razão humana. Ela busca discernir o bem e o mal dos atos humanos, orientando os fiéis não apenas com base em normas externas, mas iluminando a grandeza da vocação cristã. O Concílio Vaticano II, citado amplamente no capítulo, encoraja os teólogos a buscar formas adequadas de comunicar a verdade moral, sem modificar seu sentido essencial. Assim, a Igreja reconhece e valoriza as contribuições teológicas contemporâneas, desde que estejam em harmonia com a "sã doutrina".

Entretanto, o capítulo também aponta os desvios que emergiram em certas correntes da teologia moral pós-conciliar. Algumas interpretações exaltam a liberdade humana ao ponto de transformá-la em um princípio absoluto e autônomo, dissociado da verdade. A consciência individual passa a ser vista como instância suprema e infalível para julgar o bem e o mal, o que resulta em uma ética subjetivista e relativista. Esse afastamento da verdade revelada desfigura a consciência moral, levando à perda da noção de uma verdade universal e imutável.

O capítulo critica duramente essa visão, afirmando que a liberdade humana, longe de ser limitada pela lei divina, encontra nela sua verdadeira realização. Deus, como único conhecedor perfeito do bem do homem, oferece sua lei não como uma imposição, mas como um caminho para a plenitude da liberdade e da felicidade. Assim, a liberdade não pode ser entendida como a criação autônoma de valores, mas como uma resposta à verdade que Deus inscreveu na ordem da criação.

Um dos pontos centrais do capítulo é a defesa da lei moral natural. Esta não se reduz a um conjunto de normas biológicas ou culturais, mas exprime uma ordem racional que reflete a sabedoria divina. A lei natural está inscrita na própria natureza da pessoa humana em sua dimensão corporal e espiritual, orientando-a para o bem e para Deus. A encíclica rejeita a concepção reducionista que separa a liberdade da natureza humana, denunciando a tendência moderna de tratar o corpo como um mero instrumento da vontade. Pelo contrário, o ser humano é uma unidade de corpo e alma, e a moralidade dos seus atos não pode ignorar essa unidade.

A consciência moral, outro tema fundamental do capítulo, é apresentada como o lugar onde a pessoa se encontra a sós com Deus. A encíclica ressalta que a consciência não cria a verdade moral, mas a reconhece e aplica às situações concretas. Quando reta e bem formada, ela guia o homem para o bem; contudo, se é deformada pelo pecado ou pelo erro culpável, pode levá-lo ao afastamento de Deus. A Igreja, portanto, tem o dever de iluminar a consciência dos fiéis, oferecendo-lhes a verdade revelada e ajudando-os a discernir entre o bem e o mal.

Por fim, o capítulo II reafirma que a liberdade humana só encontra seu sentido pleno na adesão à verdade divina. A Igreja, como guardiã dessa verdade, tem a missão de proclamar a moral cristã com fidelidade e clareza, mesmo diante das mudanças culturais e dos desafios modernos. A verdadeira liberdade não consiste em fazer o que se quer, mas em escolher o bem e alcançar, assim, a plena realização da pessoa humana em Deus.

O capítulo II oferece uma resposta contundente às correntes subjetivistas e relativistas da teologia moral contemporânea. Ela reafirma que a liberdade e a consciência devem estar sempre vinculadas à verdade objetiva e à lei divina, que não suprimem a dignidade humana, mas a elevam, conduzindo o homem à verdadeira felicidade e à vida eterna.

O capítulo III da encíclica, intitulado "Para não se desvirtuar a cruz de Cristo" (1 Cor 1, 17), aprofunda a reflexão sobre a relação entre liberdade e verdade, destacando a necessidade de uma liberdade autêntica que se submeta à verdade divina. A encíclica denuncia o relativismo moral contemporâneo, que dissocia a liberdade da verdade e conduz a uma autodestruição progressiva do ser humano. A Igreja é chamada a conduzir os fiéis à redescoberta do vínculo essencial entre verdade, bem e liberdade, uma tarefa urgente diante da cultura que frequentemente rejeita valores morais objetivos.

A liberdade humana, não é absoluta nem autossuficiente, mas sim uma liberdade dada por Deus, que se realiza plenamente no amor e na entrega de si mesmo, como Cristo demonstrou na cruz. A Igreja propõe, então, o modelo de Cristo crucificado como a resposta definitiva à busca humana por liberdade e sentido. A verdadeira liberdade não é uma autonomia desvinculada da moral, mas a capacidade de escolher o bem, fundamentada na verdade revelada por Deus. Também e aborda a separação entre fé e moral, uma das consequências mais graves do secularismo. Muitos cristãos vivem como se Deus não existisse, adotando critérios de julgamento e conduta alheios ao Evangelho. A encíclica destaca a necessidade de redescobrir a novidade da fé cristã e sua força de discernimento frente à cultura dominante. A fé não é um simples conjunto de crenças, mas um encontro transformador com Cristo, que exige uma vida coerente com seus mandamentos.

Além disso, ressalta o valor do martírio como testemunho supremo da verdade moral. Os mártires, ao preferirem a morte a cometer um ato moralmente errado, proclamam que não é lícito fazer o mal para obter qualquer bem. A sua fidelidade até o fim é uma prova eloquente da inviolabilidade da lei moral e da dignidade humana, que não pode ser transgredida sob nenhuma circunstância.

A conclusão da encíclica confia a Igreja e todos os fiéis à intercessão de Maria, Mãe de misericórdia. Maria, que acolheu plenamente a vontade de Deus, é apresentada como modelo de obediência à verdade e de vida moral perfeita. João Paulo II encerra o documento com uma mensagem de esperança, afirmando que a graça de Cristo torna possível a observância da lei moral, mesmo nas situações mais difíceis. A verdadeira moral cristã, longe de ser um fardo impossível, é uma resposta de amor a Deus, vivida com simplicidade e alegria no seguimento de Cristo. A encíclica reafirma, assim, a necessidade de manter a união entre verdade e liberdade, entre fé e moral, destacando a missão da Igreja de proclamar a verdade moral com fidelidade e misericórdia. A busca pela santidade, sustentada pela graça divina e pela intercessão de Maria, é o caminho para a verdadeira liberdade e realização humana.


Texto: Henderson Souza, Filosofo e Acadêmico de Teologia PUC GO

 
 
 

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